No outono de 1991, Portugal ligou-se à Internet, como resultado do projeto “Serviço IP da RCCN”, conduzido pela Unidade FCCN (então Fundação para o Desenvolvimento dos Meios Nacionais de Cálculo Científico). José Legatheaux Martins, da Universidade Nova de Lisboa, liderou esse projeto, tendo já sido apontado como o “pai” da Internet portuguesa. Em conversa com a FCCN, o Professor recorda os principais momentos e partilha memórias desse trabalho, revelando o papel da Unidade FCCN neste processo: “Todos os participantes tinham a impressão de estar a contribuir para qualquer coisa de grande e relevante”.
«Nunca tive hesitações sobre o caminho a tomar: ligar o país à Internet»
No próximo outono, assinalam-se 30 anos passados sobre a ligação de Portugal à Internet. Pode descrever-nos o papel da Unidade FCCN (então Fundação para o Desenvolvimento dos Meios Nacionais de Cálculo Científico) neste processo?
A ligação de Portugal à Internet foi um processo “bottom-up”. Vários docentes de diversas universidades fizeram reuniões informais para prepararem o projeto. Se bem me lembro, houve uma primeira reunião na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a que se seguiram outras no Centro de Informática da Universidade do Porto, na Universidade de Coimbra e na Universidade do Minho.
Aquela em que se decidiu avançar com a formalização do projeto foi no Centro de Informática da Universidade do Porto. Nessa reunião, fomos muito incentivados pelo seu Diretor, o Prof. Luís Damas, a encontrarmos uma forma de propor o projeto ao Programa Ciência. A instituição que poderia enquadrar formalmente o projeto e a candidatura ao Programa Ciência era, naturalmente, a FCCN (então Fundação para o Desenvolvimento dos Meios Nacionais de Cálculo Científico), que a partir dessa decisão assumiu o papel de instituição de enquadramento do projeto.
A FCCN tinha até então desenvolvido algumas ações para permitir o acesso remoto ao supercomputador que tinha adquirido e que estava instalado no LNEC. Foi com base nessas ligações iniciais que se montou o primeiro backbone IP das universidades portuguesas, ou seja, parte do financiamento desse backbone nacional já vinha da FCCN. O membro da direção da FCCN que passou a estar envolvido diretamente no projeto era o Prof. Vasco Freitas da Universidade do Minho e vogal da Direção da FCCN, mas toda a Direção da FCCN da altura acarinhou o projeto.
Como se efetuou tecnicamente essa montagem do primeiro backbone IP? A FCCN teve algum papel nessa dimensão?
Para a ligação do backbone IP nacional à Internet, usámos uma linha internacional que era subsidiada pela União Europeia. Essa ligação funcionava com base no protocolo X.25 para ligar as universidades, através do INESC, a Amsterdão. Se bem me lembro, era também a FCCN que era responsável pelo financiamento europeu que enquadrava essa linha.
Ou seja, a FCCN já subsidiava, com objetivos diferentes, as linhas de comunicações que permitiram, depois de reconfigurados os protocolos usados, passar a usar os protocolos da Internet para estabelecer a ligação entre um backbone IP nacional e a Internet. Para esse efeito usámos a linha X.25 de ligação a Amsterdão para nos ligarmos ao backbone europeu da Internet, que era gerido pela EUnet, uma rede cooperativa de instituições europeias.
A FCCN, não tendo tomado esta iniciativa, quando percebeu o alcance dessa ligação, passou a apoiar o projeto, chamado-lhe a vertente IP da RCCN (Rede de Cálculo Científico Nacional). No entanto, pouco tempo depois essa chamada “vertente” passou a ser a própria RCCN.
Que memórias guarda deste tempo? Como foi coordenar este trabalho?
Dos participantes mais seniores no projeto eu sempre fui o único que não teve hesitações sobre a direção que o projecto deveria tomar: ligar o país à Internet, incluindo até, se possível, as empresas. Como aliei esta visão clara à capacidade de mobilizar as pessoas e os meios, assumi de facto a coordenação do projecto. Também porque sabia o que era preciso fazer e tinha uma boa relação com os responsáveis da FCCN, que também me respeitavam. De jure poderia ter sido alguém com maior poder institucional mas, na verdade, todos acabaram por aceitar a minha liderança.
O meu entusiasmo pelo projecto era tão grande que acabei por levar toda a gente atrás. Por outro lado, todos estávamos muito entusiasmados e focados em poder passar a estar ligados à Internet. O trabalho progredia muito rapidamente e os resultados apareciam naturalmente. A excitação era muita e todos os participantes tinham a impressão de estar a contribuir para qualquer coisa de grande e relevante. Algo que, ainda por cima, tínhamos sido capazes de propor e de concretizar.
Mais tarde, o nível político ganhou consciência da importância da Internet e os pioneiros deram lugar aos políticos. O desenvolvimento da Internet passou a ser, naturalmente, outra coisa, já não era apenas preciso entusiasmo, conhecimentos e algum dinheiro.
Quais foram alguns dos momentos-chave no processo de construção de uma ligação de Portugal à Internet?
Foi claramente o momento que referi, no Centro de Informática da Universidade do Porto, em que todos aceitaram que deveríamos adotar os protocolos da Internet e trabalhar para nos ligarmos, usando os mesmos, ao backbone europeu. Foi nessa reunião que essa visão ficou mais clara para todos.
Lembro-me inclusivamente de, nessa reunião, ter defendido que a forma mais rápida de avançarmos seria que o projeto subsidiasse a aquisição de routers Cisco, que eram, na altura, os equipamentos mais avançados no suporte dos protocolos da Internet. Alguns colegas presentes na reunião ficaram admirados com essa defesa, pois julgavam que talvez fosse de considerar equipamentos com suporte de outros protocolos. No entanto, essas decisões revelaram-se, posteriormente, não só as correctas, como as únicas que permitiram progredirmos seriamente e na direção que todas as redes do mundo acabaram por tomar.
Outros momentos-chave foram o momento da ligação do backbone nacional ao backbone da Internet através dos protocolos da Internet, isto é o TCP/IP, e também o momento em que o NIC (Network Information Center) da Internet passou a considerar que os nosso servidores de DNS em Portugal eram os servidores oficiais do domínio .PT
Para além do trabalho de coordenação realizado por si, há outros intervenientes neste trabalho que sinta merecerem destaque?
A nível de membros seniores do projecto, o destaque deve ir para o Professor Luís Damas (que apoiou inicialmente a germinação da ideia), para o Professor Pedro Veiga (a partir do momento em que compreendeu a linha orientadora do projecto) e para o Professor Vasco Freitas (pelo seu papel de enquadramento institucional).
No entanto, como este processo foi “bottom-up”, não posso deixar de citar os nomes de todos os participantes no, então chamado, Forum-IP. Foram eles os pioneiros que resolveram que, de facto, o caminho a seguir era o de se adotarem os protocolos da Internet. São eles, os professores Vasco Freitas, Alexandre Santos e Joaquim Macedo (Universidade do Minho), os professores Luís Damas e Rogério Reis (Universidade do Porto), o Engenheiro João Neves (INESC Norte), o Engenheiro Fernando Cozinheiro (Universidade de Aveiro), os Professores Edmundo Monteiro e Fernando Boavida (Universidade de Coimbra) e o Professor Salvador Abreu (então da Universidade Nova de Lisboa).
Os professores Pedro Veiga e Henrique João Domingos, os Doutores Jorge Frazão e Carlos Canau e eu próprio (Universidade de Lisboa), bem como o Doutor António Inês (LNEC). O Engenheiro Henrique Silva, do INESC Lisboa, também deu grande apoio ao projeto.
A evolução tecnológica deste setor foi exponencial, durante as três décadas que se seguiram a esta ligação inicial. Na altura, já antecipavam que seria este o caminho a tomar? E era possível prever o impacto que esta tecnologia teria na organização social?
Antecipámos que este seria o caminho a tomar. Durante o projeto, até assistimos ao nascimento da Web, antecipámos que todas as universidades e as empresas se iriam ligar, mas não fazíamos qualquer ideia da dimensão que a Internet adquiriu depois. Eu pelo menos nunca imaginei que aconteceriam os desenvolvimentos que tiveram lugar nos últimos 20 anos, nem a dimensão que a rede veio a adquirir.
Era difícil antecipar isso com algum realismo. Basta atentar em alguns números. Na altura em que o projeto arrancou, os custos das comunicações eram tão elevados que não era possível antecipar que seria possível, como hoje o é, que milhões e milhões de pessoas pudessem dispor de banda larga.
Só para colocar esta questão em perspectiva, em 1991, o supercomputador da FCCN deve ter custado várias centenas de milhar de euros, mas a sua capacidade era, provavelmente, a mesma que a de um laptop potente atual, com menos disco ou memória. Por outro lado, o custo da ligação Lisboa-Amsterdão era de cerca de três mil e quinhentos euros por mês, mas a sua capacidade era cerca de 16000 vezes mais lenta que a de uma ligação em banda larga a 100 Mbps (que hoje deve custar menos de 30€ por mês)
Na verdade, foi este aumento exponencial da capacidade e a descida de preços abissal que permitiu a atual escala sem precedentes e abriu o caminho aos modelos económicos que sustentam os desenvolvimentos atuais.
No site que criou, refere a criação de uma “avenida” específica: o desenvolvimento de ligações entre instituições de ensino superior (ou “Internet Académica”). Olhando para o que são hoje em dia as redes académicas e de investigação europeias e nacionais (como as redes GÉANT ou RCTS), como avalia essa evolução?
Do meu ponto de vista, as redes europeias, como a GÉANT por exemplo, foram cruciais para que as universidades e os institutos de investigação europeus (e portanto também a “Internet Académica” portuguesa) tivessem acesso mais cedo a redes de grande qualidade e capacidade. Esta possibilidade foi fundamental para o desenvolvimento científico nacional em geral. Têm também sido importantes para alguns desenvolvimentos a nível de redes avançadas. No entanto, relativamente aos desenvolvimentos da Internet, ao longo dos últimos anos, parece-me que a Indústria lidera, quer ao nível das comunicações de alta capacidade, quer também ao nível das novas plataformas e sistemas distribuídos com escala gigantesca.
Licenciado em Engenharia Informática e doutorado em Sistemas Distribuídos, José Legatheaux Martins tem um vasto percurso académico, com a execução ao longo do tempo de funções de professor catedrático, Chefe do Departamento de Informática da FCT/UNL e Vice-Reitor para o Conselho Científico da mesma instituição. Durante 2019 foi coordenador de avaliação de todo o corpo docente da FCT/UNL e, durante 2020, foi o coordenador A3ES de uma comissão de certificação de programas de licenciatura, mestrado e doutoramento de universidades portuguesas. Desde 2017 é o presidente do Capítulo Português da Sociedade da Internet.
Para conhecer melhor a unidade FCCN recomendamos a visita à página Quem Somos, e a leitura da sua história pela mão do seu coordenador Geral, João Nuno Ferreira, no artigo Os desafios da RCTS: 33 anos de história.